Celebrando o centenário do dramaturgo brasileiro Jorge Andrade, a Cia. Triptal, fundada e conduzida por André Garolli, está com o projeto A Tragédia da Historiografia do Estado Brasileiro Pela Ótica de Jorge Andrade, que culmina em uma imersão na obra do autor por meio de oficinas, leituras cênicas e a montagem de Pedreira das Almas no segundo semestre de 2022. O TeE conversou com o Garolli sobre o processo de montagem e preparação desse projeto, além de suas perspectivas e reflexões sobre o atual cenário artístico-cultural do Brasil. Vem com a gente!
TeE: O projeto “A Tragédia Da Historiografia Do Estado Brasileiro Pela Ótica De Jorge Andrade” passa por quais períodos da história do Brasil?
André Garolli: Basicamente, estamos trabalhando em cima de um recorte que se chama “Marta, a Árvore e o Relógio”, um compilado de 10 textos do Jorge Andrade que vão desde o período dos bandeirantes, no final do século XVI e início do XVII, passando pelas confrarias, momento da inconfidência mineira, final do século XVII e início do XVIII; então começamos a adentrar o período da mineração, que é quando se passa Pedreira das Almas; e no final do ciclo do ouro, começamos o ciclo do café, onde há a transferência regional de Minas Gerais para São Paulo, até a década de 20. Com a quebra da bolsa de 1929, ocorre a falência de muitos fazendeiros, o início da imigração de italianos, espanhóis, alemães, portugueses e japoneses para o Brasil; o início da industrialização até chegar no período pré golpe militar, ou seja, até o final dos anos 50, começo dos anos 60.
São poucos os autores no mundo que conseguiram fazer um amplo traçado histórico da formação de um país, mais especificamente, de uma região. Eugene O’Neill tentou fazer isso com a história americana, mas desistiu na terceira obra; Arthur Miller também tentou, mas de referência mundial, temos poucos.

TeE: O universo de Jorge Andrade está muito ligado com a questão de identidade e memória coletiva do brasileiro. Esse debate se perdeu hoje com a dramaturgia contemporânea? O Brasil já sabe o que significa ser brasileiro?
Garolli: A gente mal começou essa discussão. Temos muitos movimentos pautados sobre a diversidade hoje em dia, e que bom que temos, mas um país que é fruto de uma miscigenação tão grande nem deveria usar o termo raça. Nossa formação se deu a partir da junção de índios com negros, brancos, etc., então é absurdo as pessoas precisarem reivindicar seus lugares ainda hoje, e com todo direito e respeito, mas já deveríamos ter saído disso. Esse entendimento do que é ser brasileiro ainda passa por essa dificuldade, infelizmente.
O teatro é incrível porque é uma condensação de todas as outras matérias. O teatro precisa da história, da física, geografia, matemática… Ele dialoga com todas as outras áreas do conhecimento, e agora revendo a obra do Jorge, eu vejo quantas lacunas existiram na minha formação em relação ao estudo do Brasil. O Brasil só começou a existir como uma instituição (não vou nem dizer país) a partir de 1808, devido ao Napoleão ter decretado bloqueio continental na Europa e forçado a família real portuguesa a fugir. D. João VI chega aqui, olha esse país que até então só havia sido sugado e extraído das riquezas e bens de produção durante 300 anos, e resolve criar minimamente uma estrutura de civilização para ele viver.
Nós somos um país muito jovem, com nem 250 anos de estruturação. 300 anos foram somente de pessoas que vinham para cá extrair e explorar a terra, não desenvolver uma nação. Diferente do processo de colonização dos Estados Unidos, por exemplo, que à maneira deles, chegaram naquelas terras e buscaram criar um país, uma cultura e uma identidade desde o começo. Claro que também houveram processos terríveis de genocídio indígena, mas foi diferente daqui, que somente extraíam tudo que podiam, buscavam enriquecer ao máximo para irem embora e viverem em seus países de origem.
E tudo isso vem à tona para se discutir o Brasil hoje. A gente não sabe direito quem somos, de onde viemos, a maioria desconhece ou conhece muito pouco da história do próprio país. Acredito que por um momento, que foi entre os governos de Getúlio Vargas até o de Juscelino, o Brasil começou a criar uma cara. As leis trabalhistas, a industrialização, os movimentos artísticos na música, teatro e cinema, perdemos e diluímos com o golpe militar. É preciso revisitar tudo que fomos e o que não fomos para justamente tentar encontrar quem somos hoje.

TeE: No ciclo de leitura, vocês escolheram os textos “O Sumidouro”, “As Confrarias” e “Vereda da Salvação”. Por que a escolhe desses textos?
Garolli: Esses três textos são os que antecedem ou quase que se aproximam de Pedreira das Almas, principalmente O Sumidouro e As Confrarias, que nunca foram montados profissionalmente, então considero importante trazê-los à tona.
Hoje, discutimos quem foram os bandeirantes, se é preciso demolir estátua ou não, e o Jorge Andrade escreveu em O Sumidouro uma peça falando sobre os bastidores do movimento das bandeiras liderado pelo Fernão Dias, mostrando a obsessão dele em encontrar o vale de ouro, e o preço que pagou por estar preso nisso; ao mesmo tempo que faz uma revisão de si mesmo enquanto artista obcecado pela dramaturgia.
Já em As Confrarias ele faz o exercício de apresentar a Marta, uma personagem muito obscura, que trouxe o progresso, as ideias revolucionárias, e que visita as confrarias que nada mais eram do que máfias em um Brasil que não tinha ainda uma estrutura de Estado formada. Trazendo também um debate muito contemporâneo sobre as questões das raças: na peça, existem as confrarias dos brancos, dos negros, dos pardos, formadas quase como partidos políticos, lutando por interesse e espaço e que não se aceitam entre si.
E o Vereda da Salvação se passa em um período posterior ao Pedreira, mas traz uma discussão muito pertinente ao trabalho como um todo. Os personagens estão dentro de uma aldeia, são trabalhadores da terra que estão no fim de um ciclo de ocupação de posses, onde há uma evangelização messiânica daquelas pessoas. O Jorge questiona sobre o que essas pessoas realmente têm: elas ocupam uma terra que não é delas, trabalham em uma terra em que nada vai ficar pra elas, pagam imposto por tudo que consomem; então o que elas estão fazendo naquela terra, ou melhor, na Terra? Há um discurso de questionamento que passa na cabeça dos personagens que é: “o que estamos fazendo nesse lugar, se já há um lugar divino que está prometido pra nós? A religião diz que o céu é dos pobres, certo?”. Então ele vai de um processo de evangelização até o suicídio, pois se o que é divino já está prometido, aqui já não há mais nada para essas pessoas. A peça é uma tragédia quase Shakespeariana que nos ajuda a discutir um dos temas principais de Pedreira.

TeE: Estamos vivendo em um momento muito específico da história do nosso país, pois além de comemorarmos o centenário do Jorge Andrade, do movimento modernista, 200 anos de independência, também estamos em ano de eleição presidencial. O que Pedreira Das Almas revela sobre o Brasil atual para o público que vai assisti-la agora em 2022?
Garolli: 2022 estamos celebrando essas datas, mas também questionando muito do que nos foi ensinado sobre elas. O que realmente foi o modernismo? O que realmente foi a independência do Brasil?
A grande questão do Pedreira, que apesar de ainda não ter completamente decidido para qual caminho vou levar esse espetáculo, é que mostra uma cidade que esgotou seus recursos e precisa decidir qual o próximo passo tomar. Existe o Gabriel, um personagem que vislumbra levar essas pessoas para um planalto e uma planície, tirá-los de onde estão e buscar um lugar que possibilita novas formas de sobrevivência. E temos a Urbana, que representa quem quer ficar, reconstruir essa cidade com seu passado, seus mortos, com tudo que eles edificaram até aquele momento. Então há o embate entre o sair para o lugar novo, ou ficar no lugar que já é conhecido.
E o Brasil está justamente passando por isso agora. Logo teremos que fazer uma escolha que irá definir muitas questões pautadas em dois grandes extremos. Infelizmente, a minha geração teria que ter preparado melhor esse país, mas teremos que votar em alguém que governa baseado em ideais da minha geração. Sei que eu vou fazer o Pedreira em um período complicado, e que vou ter que assumir uma postura específica durante a encenação. Eu gostaria de deixar o espetáculo mais em aberto, deixar a pergunta ressoar mais, mas terei que fazer uma escolha para não ficar em cima do muro, e é um momento em que realmente não se pode ficar em cima do muro. O ideal seria jogar a questão para o público resolver, mas nós artistas, hoje mais do que nunca, precisamos nos posicionar contra algo tão execrável como é o nosso atual governo.
Então será que ir com o Gabriel ou ficar com a Urbana é a melhor saída? É isso que eu quero trazer para quem assiste: qual é a melhor opção a partir de tudo que já aconteceu até agora?
Temos o objetivo de estrear na primeira quinzena de setembro, ainda não está certo o lugar, mas assim que tivermos a produção melhor estruturada, anunciaremos em todas as nossas redes sociais.
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TeE: John Marques e Gabrielle Risso