Olá leitores! Nosso estudo de hoje vai ser focado no livro “conversa de refugiados” do Bertolt Brecht e a influência que esse texto (publicado apenas em 1961, 5 anos após o falecimento do autor), sua pesquisa e o desenvolvimento do tema tiveram no teatro ocidental. Vem com a gente!
Escrito entre os anos de 1940 e 1944, durante o exílio de Brecht na Finlândia e nos Estados Unidos, a primeira edição do livro foi publicada na Alemanha pelas revistas Sinn und Form (1957) e Aufbau (1958) em formato de excertos que seguiam não à ordem cronológica do texto, mas sim à numeração provisória dos manuscritos de Brecht. É importante ressaltar que a escrita do dramaturgo não seguiu a linearidade de estrutura da lógica realista, uma vez que o teatro épico, vanguarda que teve seu maior expoente em Brecht (segundo Anatol Rosenfeld), teve como um de seus principais instrumentos cênicos a quebra do tempo-espaço direto entre as cenas.
O diálogo entre os personagens, geralmente extensos, não são constituídos dentro de uma estrutura dramática, e é difícil de ser encenado devido ao caráter pouco prático do raciocínio complexo que os personagens seguem em suas conversas. Não há obrigatoriamente uma ação dramática construída em cenas, mas sim, uma argumentação colaborativa com objetivo de desvendar junto ao interlocutor a realidade em que vivem os refugiados, suas causas e consequências.
O texto se inicia com os dois personagens sentados no restaurante de uma estação ferroviária de Helsinque (no original Helsingfors, sua denominação sueca), “tomando sempre o cuidado de olhar para os lados”. O primeiro é descrito como “o alto e gordo”, e o segundo como “o atarracado”, e são dois refugiados alemães fugindo da segunda guerra. Ziffel (alto e gordo) é um físico pesquisador, e Kalle (atarracado), um metalúrgico comunista. É interessante notar que a descrição física e contextual dos dois personagens sustentará uma linha comportamental de opiniões divergentes e ao mesmo tempo complementares entre eles durante o resto do texto, uma vez que darão voz a argumentos e reflexões sobre diversos temas abordados nos capítulos, seguindo uma dialética muito mais hegeliana (e até mesmo, marxista) do que platônica.
Te explico: resumidamente, Hegel defendia a dialética como “a lei que caracteriza a realidade como um movimento incessante e contraditório, condensável em três momentos sucessivos (tese, antítese e síntese) que se manifestam simultaneamente em todos os pensamentos humanos e em todos os fenômenos do mundo material”. Quando Brecht coloca seus personagens em dialética já em sua construção (trabalhador manual x intelectual; alto x baixo; seriedade x sensibilidade; etc.) e nos argumentos apresentados durante o texto, ele está reforçando que os refugiados precisam o tempo todo estar em um movimento dialético: questionando, analisando e decidindo rapidamente qual passo dar em seguida, já que a sobrevivência e a fuga os coloca nesse estado de urgência no raciocínio.
Durante seu período de isolamento, Brecht buscou na poesia, no teatro e na literatura formas de oferecer resistência ao fascismo europeu, especialmente o alemão. Nesse texto, fica nítida essa busca ao notarmos que os exilados são colocados em cena como um tipo social, não simplesmente como representações autobiográficas de algo que o dramaturgo estava vivendo naquele momento, como visto no seguinte trecho extraído do capítulo “Dinamarca ou o humor“:
“ZIFFEL
É insuportável viver num país sem humor. Mais insuportável, porém, é viver num país onde ele é necessário.
KALLE
Quando minha mãe não tinha nada, não tinha nenhuma manteiga para nos dar, passava humor na fatia de pão. O gosto não é ruim, mas não satisfaz.”¹
O uso do tema ‘humor dinamarquês’ é construído, tanto no excerto como no restante do capítulo, como pano de fundo para tratar sobre a condição de vida miserável em que muitos refugiados se encontram, fazendo também uma crítica nada sutil a como muitos países – como a Dinamarca, durante a primeira guerra mundial – lucraram exponencialmente com a guerra.
Portanto, lutar contra o fascismo, para Brecht, começa em primeiro lugar com “a necessidade de elucidá-lo a partir de um estudo aprofundado, gesto que demandava a mobilização de disciplinas as mais variadas, a começar pela economia, que muitos escritores preferiam evitar, tamanho era o esforço requerido”².
A influência iluminista de Denis Diderot (em especial seu livro Jacques, o Fatalista, e seu Amo) para Brecht foi essencial para a escrita de Conversas de refugiados, pois está presente durante todo o texto a ideia da defesa da liberdade individual e o questionamento do ideal de “destino”, argumento muito utilizado por líderes fascistas para justificar seus atos. Diderot, por sua vez, bebeu diretamente de A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, escrito por Laurence Sterne no século XVIII, que é de onde nasce o estilo de escrita digressiva observado nesse livro de Brecht.
Para se pensar o teatro pós-Brecht, faz-se necessário entender sua obra como um todo, especialmente esse texto que, apesar de ter sido publicado postumamente, revela as opiniões, lógicas e raciocínios do dramaturgo em um dos momentos mais impactantes de sua vida. É claro que Brecht não foi o primeiro a falar sobre refugiados no teatro, mas construí-los a partir de uma perspectiva de classe social impulsionada pela dialética hegeliana e marxista com certeza foi revolucionário para a produção dramatúrgica que se seguiu no teatro ocidental após seu falecimento.
Autores como Matèi Visniec (dramaturgo, autor de Migraaaantes ou Tem Gente Demais Nessa Merda de Barco ou o Salão das Cercas e Muros), Regina Müller (antropóloga, autora de Antropologia e Performance), Jacques Rancière (filósofo, autor de Será que a arte resiste à alguma coisa?), entre outros contemporâneos, passaram pelo estudo do pensamento e da lógica de Brecht para desenvolverem suas pesquisas.
Então, nós do Teatro Em Escala recomendamos demais essa leitura! É essencial para entender Brecht, ter um pensamento crítico mais afiado e ser uma ótima adição à sua lista de livros lidos em 2022.
Sinta-se sempre convidado a nos deixar comentários sobre suas impressões, críticas, dúvidas…
Nos vemos no próximo texto, evoé!
Autor: JOHN MARQUES
REFERÊNCIAS:
1. BRECHT, Bertolt, 1898-1956. Conversas de refugiados – São Paulo, Editora 34 – 2017 (1ªedição).
2. REDONDO, Tercio. Posfácio – São Paulo, Editora 34 – 2017 (1ª edição).
BIBLIOGRAFIA
– A Ciência da Lógica – Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1812)
– Anatol Rosenfeld – O teatro épico (1965)
– Daniel Gorman e Rana Yazaji – Everybody wants a refugee on stage (2015)