Nossa próxima entrevistada é a querida Rita Pisano, que bateu um papo super divertido com a gente sobre a peça “Villa” que vai ao ar pelo Itaú Cultural nos dias 22 e 29 de setembro, além de suas outras produções pré e durante a quarentena, e você já pode conferir a seguir:

TeE: RITA, ANTES DE COMEÇAR A QUARENTENA VOCÊ ESTAVA EM QUAIS PROJETOS?
RITA: A gente estava em cartaz com “Beijo no Asfalto”, no Teatro Arthur de Azevedo em fevereiro, e a ideia era que continuasse em outras temporadas. Estava também com Dom Quixote no SESC Consolação em março e abril. A gente fez uma apresentação no teatro do SESC, que é super importante pra nós da Cia. UM porque somos todos do CPT. Então voltar pra lá com uma peça da companhia que surgiu ali era um momento ritualístico pra gente. Eu tinha feito o ‘Villa‘ no Faroffa (circuito paralelo de artes de SP) também, e foi uma loucura, tinha gente de todo país, totalmente aglomerado.
TeE: E AGORA DURANTE A QUARENTENA, VOCÊ FEZ ALGUMAS APRESENTAÇÕES ONLINE JÁ E TEM A TEMPORADA DA PEÇA ‘VILLA’ PELO ITÁU CULTURAL. CONTA PRA GENTE UM POUCO SOBRE ESSAS EXPERIÊNCIAS.
RITA: A primeira coisa que fiz na quarentena foi o rede de leituras com o Marcello Airoldi, e aí surgiu uma peça chamada “Poderia ter sido” da Ângela Ribeiro, que eu faço com Bruno Perillo. A gente adaptou pro formato à distância, com cada ator no seu carro mas com a ilusão de estarmos no mesmo carro. O texto conta a história de um casal durante um período de tempo longo, em vários momentos de discussão sobre a relação. A peça termina na pandemia e começa antes dela, é bem legal. De maio até julho apresentamos no rede de leituras, duas apresentações pela prefeitura no Teatro João Caetano e no Arthur Azevedo, e agora vendemos o texto pra grupos fechados.
Essa peça foi muito divertida, a gente brincou com muitos ângulos diferentes do celular, e mesmo contracenando como se ele estivesse do meu lado, eu não olho nunca pra câmera, então a gente não se vê. Nosso jogo se dá pela voz um do outro, e a gente desenvolveu uma conexão pela escuta muito forte. É preciso ter uma atenção muito intensa de uma nova forma, ainda bem que Dionísio ajuda.
No projeto do palco presente, a Natália Gonsales me chamou pra fazer 3 apresentações de Fóssil. Foi super legal, esse texto da Marina Corraza é super forte, e foi muito emocionante voltar pro teatro no meio da pandemia, mesmo com ele vazio. A Sandra Corveloni, o Nelson Baskerville e eu comentamos que era como se estivéssemos fazendo teatro na guerra, nesse momento de resistência muito bonito, emocionante e triste.

É muito louco apresentar com o teatro vazio, porque você coloca toda a sua potência e verdade no palco, e você acredita que tem alguém atrás da câmera assistindo, um exercício quase que de fé.
Esse formato possibilita que outras pessoas fora de São Paulo consigam assistir a peça. Eu tive amigos do Suriname que não poderiam assistir se não fosse nesse formato. Está sendo um momento de aprendizado que a gente só vai ter consciência daqui a um tempo, estamos vivendo um monte de coisa e eu não consigo ainda elaborar o que é tudo isso.
E então surgiu o convite do Itaú Cultural pra fazer as duas apresentações da peça ‘Villa’, a gente estreia terça-feira dia 22/09 e também apresenta dia 29/09 pelo Zoom.
TeE: PRA QUEM NÃO ASSISTIU PRESENCIALMENTE, CONTA PRA GENTE UM POUCO SOBRE A PEÇA.
A peça é de um diretor chileno chamado Guillermo Calderón, e fala sobre um centro de tortura que se chamava Villa Grimaldi. Na peça tem 3 atrizes numa mesa discutindo o que fazer com esse espaço. A peça não tinha muitos recursos de movimentação, ela acontece durante uma reunião, e então para o formato online virou uma vídeo conferência.
E quando começamos a ensaiar, descobrimos que existe um jeito muito diferente de interpretar pra câmera, porque não é teatro exatamente, mas também não é cinema, então é um híbrido que a gente foi lapidando pra entender o que é essa interpretação. Ainda mais o Villa, que é um texto muito verborrágico, onde a gente defende ideias e tem embate entre essas atrizes. Então está sendo um momento de aprendizado absoluto, de entender como fazer essa peça interessante nesse formato.
TeE: ALÉM DA ESTÉTICA, VOCÊS ADAPTARAM O TEXTO TAMBÉM OU TENTARAM AO MÁXIMO MANTER ELE NA ÍNTEGRA?
RITA: O texto está totalmente na íntegra. É uma dramaturgia muito inteligente do Calderón, então todo o processo de trabalho do Diego Moschkovich (diretor) tem a ver com esse processo do desenvolvimento do pensamento das atrizes no que elas estão dizendo. Toda fala da outra mobiliza a tua própria, então estamos entendendo como deixar isso verdadeiro, vivo e sem cortes. É um exercício de se colocar em situação de verdade.

TeE: PORQUE VOCÊS QUISERAM TRAZER ESSA PEÇA PROS PALCOS BRASILEIROS? O TEXTO TRAZ A DISCUSSÃO DE COMO RETRATAR A MEMÓRIA COLETIVA DA DITADURA CHILENA. ISSO FAZ UM PARALELO DE COMO NÓS BRASILEIROS DISCUTIMOS E ESTUDAMOS A DITADURA QUE TIVEMOS AQUI?
RITA: Cada vez mais, sim. Eu tinha assistido outras duas montagens anteriores do Diego (diretor) montando textos do Calderón e fiquei profundamente apaixonada. Pesquisando outros textos, e sendo uma estudiosa de história, eu acabei encontrando ‘Villa’ e queria montar pensando em um contexto que focasse na memória. Só que quando começamos a trabalhar e recebemos o convite do Sesc pra estrear, foi véspera das eleições presidenciais de 2018. A gente estreou no final de semana véspera da eleição, e vocês não têm ideia do que foi.
A peça começou com a ideia de falar sobre a memória de algo que aconteceu no Chile, e acabou se tornando uma peça que discutia muito a atualidade, profundamente o momento que estamos vivendo. A discussão sobre memória se deu não como algo que passou, mas como algo que ainda é, que a gente vem construindo.
Se a gente pensa nas ditaduras da América Latina, todos condenaram os seus ditadores, reconheceram os seus presos políticos e foram atrás da sua história. O Brasil é o único país em que ninguém foi punido, ninguém foi julgado, e o nosso governo vive em um processo de negação desse momento. A gente se reconhece por volta de 400 desaparecidos políticos, quando a gente sabe que o número é muito maior.
Então sim, o Villa é muito atual porque primeiro, ele fala das mulheres vítimas de todo esse processo, e a gente vai entendendo que cada vez mais estamos em um lugar de ostracismo, quando pensamos na nossa memória e na nossa história. A gente é o que é e está onde está porque desconhecemos a nossa história de fato. Se a gente anda pelas ruas de São Paulo aqui no Paraíso, a maioria tem nomes de generais, de coronéis. Porque? Quem são esses caras?

É muito louco se pensar o que vai sendo perpetuado, o que a gente escolhe pra contar nossa história. Não é algo que vem à tona na escola, por exemplo. Se pararmos pra analisar, foi com o governo militar que começaram os grandes desmatamentos da Amazônia. E de lá pra cá, estamos praticamente com quase metade da Amazônia perdida, fora as queimadas agora no centro-oeste, e com o governo super militarizado negando esses casos.
Eu fui pro Chile nesse processo com as outras atrizes para pesquisa, e é impressionante como eles lembram a todo momento que houve uma ditadura e que não pode haver mais. Existem coisas escritas na rua, museus, está muito presente na vida dos moradores. Aqui a gente tem um processo inverso, e pra mim tem muito a ver com a maneira que construímos a nossa memória.
Estávamos discutindo em um dos ensaios que estou fazendo sobre os desaparecidos em democracia, que existe aqui de uma forma quase que “regularizada”. Se a gente pensa no número de mortes das favelas e dos indígenas, tudo isso é fruto dessa memória. A gente não pode dissociar uma coisa da outra.
Mas temos que falar disso pra conseguir transformar né, a gente só consegue mudar alguma coisa se a gente souber de onde estamos vindo. Então esses temas me interessam profundamente no teatro, e por isso fiquei tão feliz de fazer ‘Fóssil’.
TeE: VOCÊ ACREDITA QUE AGORA COM A EXISTÊNCIA DO TEATRO ONLINE, AS PESSOAS TÊM PROCURADO MAIS ARTE POR CONTA DA FACILIDADE ?
RITA: Eu acredito que a arte tem salvo a gente nessa quarentena de muitas formas. Quando a gente ficou enclausurado em casa, o número de trabalho aumentou pra muita gente, e diminuiu pra muita gente também. Eu por exemplo sou professora de teatro, então está sendo um super desafio dar aulas de interpretação online.
Há uma procura maior sim, mas eu não sei qual é a qualidade dessa apreciação. Eu sinto que nesse formato a gente fica “multi funções”, então eu assisto uma peça ao mesmo tempo que bato um bolo e respondo meu filho. Eu não sei se fazer para um grande número de pessoas significa que essas pessoas estão mergulhando nessa história, entende? Essa elaboração me parece que só teremos daqui a algum tempo.
Não acredito que as pessoas deixarão de ir ao teatro presencial por conta do online, porque existe uma questão da presença ao vivo. Compartilhar de um mesmo momento com outras pessoas respirando o mesmo ar que você, é insubstituível.
Agora, acredito que essas duas linguagens podem coexistir. Estamos fazendo algo que tem um outro nome, que eu ainda não sei o que é, embora só tenha feito peças ao vivo, nunca fiz um projeto que gravei e apresentei. A sensação antes de entrar em cena é muito parecida com o fazer teatral, no sentido de que: você entrou, o jogo tem 90 minutos, bola rolando, começou. Então esse espaço do aqui e agora continua existindo.
Eu sinto que eu as vezes tenho um cansaço da tela. Eu tenho assistido algumas peças que me interessam, e é muito diferente de ver uma série no Netflix. Muitas pessoas acessam sim, de vários lugares do Brasil e de fora, mas ainda tenho dúvidas da qualidade da fruição desse conteúdo.
A parte mais difícil pra mim é quando acaba a peça e você está lá sozinha, sem o público, sem o seu parceiro pra compartilhar da energia que se cria no fazer teatral.
TeE: E ESSAS MONTAGENS TIVERAM UMA RESPOSTA POSITIVA DO PÚBLICO? VOCÊ SENTE QUE ESSAS REFLEXÕES CHEGAM A QUEM ASSISTE TANTO PRESENCIALMENTE QUANTO ONLINE?
RITA: No Villa, a gente teve de tudo. Teve gente gritando “fora Bolsonaro”, gente gritando “aceita”, gente saindo no meio da peça… É uma peça que fala sobre uma memória que foi muito atualizada, então passamos por muitos públicos diferentes. Já fizemos em ONGs, em escolas, no Sesc Pinheiros, em encontros para estudantes, em muitos lugares diferentes. Eu acho que chega sim, porque existe um porquê de estarmos falando dessas histórias.
A gente precisa ainda ampliar muito essas discussões para além de um público fechado de teatro. Como tivemos a oportunidade de ir pra muitos lugares, a discussão aconteceu, mas pode acontecer ainda mais forte, e quem sabe agora com as apresentações online, não chegue para ainda mais pessoas de uma forma incisiva.
Fóssil foi muito legal, tivemos um público bacana nos três dias de apresentação online, e eu recebi retornos muito positivos. Eu ganhei um livro de um amigo que assistiu a peça, que tinha editado um livro sobre as curdas e me presenteou depois de ter assistido.
O alcance é ainda muito menor do que a gente gostaria, mas isso não significa que a gente tem que parar de fazer. Eu acho que é o contrário, a gente tem que continuar fazendo e descobrindo coletivamente como a gente pode ampliar esse acesso.
SERVIÇO
Villa (com interpretação em Libras)
Terças 22 e 29 de setembro de 2020
às 20h
(a transmissão será disponibilizada 15 minutos antes do evento iniciar)
Duração aproximada: 60 minutos
Palco Virtual – 270 ingressos
Ingressos em:
https://www.itaucultural.org.br/secoes/agenda-cultural/palcovirtual/espetaculo-villa-aborda-importancia-memoria
[classificação indicativa: 16 anos]
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